Violência psicológica com o uso de Inteligência Artificial: quando a tecnologia se torna arma

 Violência psicológica com o uso de Inteligência Artificial: quando a tecnologia se torna arma

Vivemos um tempo em que a inteligência artificial se tornou parte da rotina de milhões de pessoas. Está presente em assistentes virtuais, filtros de redes sociais, aplicativos de comunicação e sistemas de vigilância. Porém, o mesmo instrumento que facilita a vida cotidiana também tem sido usado como mecanismo de controle, manipulação e destruição emocional. A tecnologia, quando apropriada por quem deseja causar dano, pode se tornar uma extensão da violência humana. É o que ocorre com a violência psicológica praticada por meio da inteligência artificial.

Essa forma de agressão é silenciosa, disfarçada e altamente sofisticada. A vítima pode ser monitorada, manipulada ou humilhada sem perceber que o agressor utiliza ferramentas tecnológicas para ampliar o alcance da violência. Mensagens programadas, áudios clonados, imagens alteradas, vídeos falsificados e perfis automatizados tornam-se armas capazes de causar abalo emocional profundo e danos irreversíveis à imagem, à autoestima e à dignidade.

A Lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, inciso II, define a violência psicológica como qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, manipulação, vigilância constante, isolamento ou constrangimento à mulher. O Código Penal, no artigo 147-B, incorporou a figura do crime de violência psicológica contra a mulher, prevendo pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa. A partir dessa previsão, a lesão emocional deixou de ser vista apenas como um sofrimento subjetivo e passou a ser reconhecida como um ato de violência penalmente punível.

No ambiente digital, a violência psicológica adquire novas formas. Um dos exemplos mais alarmantes é o uso de tecnologias de deepfake, que permitem criar imagens e vídeos falsos com aparência de absoluta veracidade. Mulheres têm seus rostos inseridos em conteúdos íntimos falsificados e divulgados como forma de humilhação e vingança. A manipulação é tão precisa que torna extremamente difícil distinguir o que é real do que é fabricado por algoritmos. Essa prática, além de constituir grave ofensa à honra e à imagem, causa danos emocionais de grandes proporções, levando muitas vítimas ao isolamento social e à perda de vínculos profissionais e familiares.

Outra prática comum é a automação de mensagens de assédio e perseguição. Programas são capazes de enviar comunicações repetitivas com conteúdo agressivo, ameaçador ou manipulador, criando uma sensação constante de invasão e medo. A vítima passa a viver sob vigilância simbólica, mesmo quando o agressor não está fisicamente presente. Essa forma de violência, ainda pouco estudada, produz efeitos devastadores sobre a saúde mental e se enquadra perfeitamente na definição legal de violência psicológica.

O ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de instrumentos para enfrentar essas situações. A Lei nº 12.737 de 2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, criminaliza a invasão de dispositivos eletrônicos e a divulgação indevida de dados e imagens pessoais. O Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965 de 2014, estabelece princípios de responsabilidade das plataformas e prevê que conteúdos abusivos devem ser removidos após notificação da vítima. Quando há exposição íntima sem consentimento, o artigo 21 do Marco Civil determina que a exclusão deve ocorrer de forma imediata, bastando o pedido formal da pessoa lesada.

Apesar da previsão legal, o principal obstáculo enfrentado pelas vítimas é a dificuldade de provar a autoria e a origem dos conteúdos produzidos com o auxílio da inteligência artificial. O caráter mutável e volátil das informações digitais exige respostas rápidas e especializadas. A preservação das provas é o primeiro passo essencial. Capturas de tela, registros de links, mensagens e metadados podem servir como evidência. Em casos mais complexos, torna-se indispensável a realização de perícia digital forense, que permite identificar o caminho percorrido pela informação, localizar endereços IP e verificar manipulações de áudio e imagem.

Além da responsabilização penal, há também consequências na esfera civil. A vítima tem direito à reparação por danos morais e materiais decorrentes da exposição indevida, da destruição de sua reputação e do sofrimento emocional causado. O dano moral, nesse contexto, não é abstrato, mas concreto e continuado, pois a permanência do conteúdo na internet mantém a ferida sempre aberta. Quando as plataformas deixam de agir após notificação, tornam-se corresponsáveis pela perpetuação do dano.

A violência psicológica digital revela um novo tipo de poder, em que o controle emocional e a destruição simbólica se valem da tecnologia para alcançar suas vítimas. O uso de inteligência artificial para perseguir, humilhar ou vigiar não é um problema técnico, mas ético e social. A ferramenta, em si, é neutra. O que a transforma em arma é a intenção humana. Por isso, o enfrentamento dessa forma de violência exige mais do que leis; exige conscientização, educação digital e atuação integrada entre instituições, advogados, peritos e psicólogos.

O sistema de justiça precisa acompanhar a evolução tecnológica com preparo e sensibilidade. Delegacias de crimes cibernéticos e varas especializadas devem estar capacitadas para lidar com provas digitais complexas. É igualmente importante que o Judiciário compreenda o impacto psicológico desse tipo de agressão e adote medidas urgentes para proteção da vítima, como a retirada imediata de conteúdos, a concessão de medidas protetivas e a investigação célere da autoria.

Do ponto de vista ético, é necessário repensar o papel das plataformas digitais. Elas não podem se eximir da responsabilidade de fiscalizar o uso de tecnologias que possibilitam a criação de conteúdos falsos e a disseminação de discursos de ódio. A moderação eficiente e a cooperação com autoridades judiciais são medidas que ajudam a prevenir a repetição dessas práticas. A omissão, por outro lado, contribui para a perpetuação da violência e para o enfraquecimento da confiança no ambiente digital.

A violência psicológica mediada por inteligência artificial é uma das faces mais preocupantes da era tecnológica. Ela combina a frieza dos algoritmos com a crueldade das intenções humanas. Diante disso, a advocacia tem papel essencial não apenas na reparação individual das vítimas, mas na construção de uma nova cultura de responsabilidade digital. É dever dos profissionais do Direito transformar a dor em precedentes, o medo em segurança e o silêncio em voz ativa.

A tecnologia deve ser usada para proteger, não para destruir. A inteligência artificial, quando colocada a serviço da violência, revela a urgência de repensar os limites entre inovação e dignidade. O avanço jurídico e ético precisa caminhar lado a lado com o avanço técnico, sob pena de o futuro se tornar terreno fértil para novas formas de abuso. O Direito, portanto, é chamado a garantir que a humanidade não seja substituída pela lógica fria das máquinas, mas que a inteligência, humana ou artificial, esteja sempre a serviço do respeito e da empatia.

Por Adriana Moura Advogada

Referências

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.

BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 dez. 2012. (Lei Carolina Dieckmann)

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021. Altera o Código Penal para incluir o crime de perseguição (stalking). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Altera o Código Penal e a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) para tipificar o crime de violência psicológica contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jul. 2021.

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