Entre a lei e a realidade: O desafio de fazer justiça racial no Brasil

 Entre a lei e a realidade: O desafio de fazer justiça racial no Brasil

Refletir sobre o Dia da Consciência Negra é refletir sobre o papel do Direito em uma sociedade que ainda carrega as marcas da exclusão. O Brasil aboliu a escravidão há mais de 130 anos, mas ainda não superou o racismo institucional que se enraíza nas estruturas sociais e jurídicas. A cada 20 de novembro, o país celebra Zumbi dos Palmares e a luta do povo negro, mas a data também revela um incômodo: a igualdade prevista na lei ainda não se concretizou na vida real.

A Constituição de 1988 prometeu uma ruptura com o passado excludente. Pela primeira vez, o texto constitucional reconheceu explicitamente o racismo como crime inafiançável e imprescritível, sinalizando que o Estado brasileiro não toleraria a discriminação. Contudo, a promessa constitucional ainda se cumpre de forma desigual. O racismo persiste como ferida aberta, alimentado por práticas institucionais que, muitas vezes, normalizam a desigualdade.

A seletividade penal é um exemplo claro desse contraste. O corpo negro continua sendo o principal alvo de abordagens policiais, de prisões preventivas e de condenações. Estudos do Conselho Nacional de Justiça mostram que mais de 66% da população carcerária brasileira é composta por pessoas negras. A estatística revela que a cor da pele, no Brasil, ainda define a probabilidade de punição, evidenciando um sistema que pune corpos antes de punir condutas.

A igualdade formal e o desafio da igualdade real

O Direito brasileiro avançou muito na construção de um arcabouço normativo contra o racismo. A Lei nº 7.716/1989 tipifica os crimes resultantes de discriminação racial, enquanto o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) promove políticas públicas voltadas à inclusão e reparação. Mais recentemente, a Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, tornando-a também imprescritível e inafiançável.

Essas normas representam conquistas civilizatórias, mas, como já observou o ministro Joaquim Barbosa, a desigualdade racial no Brasil é um problema de Estado. Leis são necessárias, mas insuficientes se não vierem acompanhadas de mudanças culturais e institucionais.

A igualdade formal, aquela proclamada pela Constituição, garante o mesmo tratamento jurídico a todos. Já a igualdade material busca compensar os efeitos da desigualdade histórica, oferecendo condições concretas de acesso e oportunidade. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 186 e a ADI 3330, que trataram das cotas raciais em universidades e concursos públicos, reconheceu a legitimidade de políticas afirmativas como instrumento de justiça social.

O entendimento foi claro: tratar desigualmente os desiguais é o único caminho para alcançar equidade. Essa decisão não apenas reafirmou o valor jurídico das cotas, mas consolidou a ideia de que a neutralidade estatal diante da desigualdade é uma forma de omissão inconstitucional.

O racismo estrutural como questão jurídica

O termo racismo estrutural não é retórico. Ele descreve uma engrenagem social e institucional que perpetua privilégios. Está nas escolas que não discutem a história afro-brasileira, nas empresas que não têm líderes negros, nas instituições jurídicas com pouca representatividade.

O sistema de justiça também é parte dessa estrutura. A falta de diversidade nos tribunais e nos cargos de decisão influencia diretamente a percepção de justiça. Pesquisas do CNJ mostram que menos de 20% dos juízes brasileiros se autodeclaram negros ou pardos. Essa ausência de representatividade afeta a legitimidade e a sensibilidade das decisões judiciais em temas de discriminação racial.

A jurisprudência, contudo, tem evoluído. O Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que práticas discriminatórias configuram dano moral coletivo, passível de reparação civil. Empresas, escolas e órgãos públicos vêm sendo condenados por omissão diante de condutas racistas, ainda que sem participação direta. Essa responsabilização simbólica é um passo importante para transformar o discurso antirracista em ação concreta.

O papel transformador da advocacia

A advocacia ocupa posição estratégica na construção da igualdade. O advogado e a advogada não apenas interpretam a lei, mas também são mediadores entre o Direito e a realidade social. Isso exige sensibilidade, empatia e consciência crítica.

A advocacia criminal, em especial, deve enfrentar o racismo institucional com técnica e coragem. Isso significa questionar prisões preventivas sem fundamentos reais, apontar vieses raciais em abordagens policiais e lutar pela aplicação efetiva das garantias constitucionais.

Mas a advocacia civil também tem papel fundamental ao orientar empresas, escolas e instituições sobre programas de diversidade, políticas de inclusão e prevenção de discriminação. O Direito não se resume a reparar danos, ele deve também evitar que o dano ocorra.

A representatividade negra dentro da advocacia e do Judiciário é um fator essencial para romper ciclos de exclusão. Quando uma mulher negra sustenta oralmente perante um tribunal, ela não representa apenas uma causa, mas gerações de vozes silenciadas que finalmente encontram espaço.

Educação jurídica e mudança cultural

Nenhum avanço legislativo é duradouro se a educação não acompanhar. A Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, é um marco importante, mas sua implementação ainda é irregular. O Direito precisa estar presente também nesse debate pedagógico.

Universidades e escolas jurídicas devem discutir a questão racial não como tema periférico, mas como conteúdo central da formação humanista. O racismo não é uma pauta identitária, é uma questão constitucional ligada à própria noção de Estado Democrático de Direito.

Promover a educação jurídica antirracista é preparar futuros profissionais para reconhecer que a neutralidade do Direito não existe. Todo operador do sistema de justiça tem responsabilidade social sobre as decisões que toma ou deixa de tomar.

Um compromisso que não cabe em um dia

A Consciência Negra não deve ser vista como celebração, mas como compromisso. O 20 de novembro é um lembrete de que o Brasil só será plenamente democrático quando a cor da pele deixar de ser determinante de destino.

O Direito precisa abandonar a postura contemplativa e assumir o protagonismo na construção de uma sociedade mais justa. Isso exige que as leis sejam aplicadas com empatia, as instituições se tornem diversas e o acesso à justiça seja universal.

O futuro da advocacia está em compreender que fazer justiça racial é fazer justiça social. E enquanto a igualdade for promessa, a advocacia continuará sendo resistência.

Referências jurídicas
Constituição Federal de 1988 (arts. 5º, I e XLII)
Lei nº 7.716/1989 – Lei Antirracismo
Lei nº 10.639/2003 – Ensino obrigatório da história afro-brasileira
Lei nº 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial
Lei nº 14.532/2023 – Equiparação da injúria racial ao crime de racismo
ADPF 186 e ADI 3330 – Supremo Tribunal Federal

Por Adriana Moura Advogada

Atendimento ao cliente

Dra. Adriana Moura

Whatsapp
(11) 97331-7641

Email
pinheirodemoura.adv@gmail.com

Artigos Relacionados

Atendimento ao cliente

Artigos Relacionados