A Black Friday surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, quando o termo foi utilizado pela polícia da Filadélfia para se referir ao intenso trânsito e aglomeração de consumidores após o feriado de Ação de Graças. Com o passar dos anos, o evento tornou-se sinônimo de grandes liquidações e de aumento expressivo das vendas no comércio norte-americano.
No Brasil, a Black Friday foi introduzida por volta de 2010, inicialmente no comércio eletrônico, e rapidamente se expandiu para o varejo físico. O evento se consolidou no calendário nacional, movimentando bilhões de reais em poucos dias. Porém, a data também passou a ser marcada por práticas abusivas e infrações ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente no que se refere à publicidade enganosa e ao descumprimento de ofertas.
O marco jurídico e os direitos aplicáveis
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) é o principal instrumento regulador das relações jurídicas na Black Friday. Seu artigo 4º estabelece como princípios a boa-fé, a transparência e o equilíbrio nas relações de consumo. Esses princípios orientam toda a conduta empresarial durante períodos de promoções intensas.
Entre os dispositivos mais relevantes estão:
Art. 6º, III – direito à informação adequada e clara sobre produtos e serviços.
Art. 30 e 31 – vinculação da oferta e obrigação de que todas as informações sejam corretas, precisas e ostensivas.
Art. 35 – direito de exigir o cumprimento forçado da oferta ou a restituição do valor pago.
Art. 37 – proibição de publicidade enganosa ou abusiva.
Art. 39, V – vedação de exigência de vantagem manifestamente excessiva.
Art. 49 – direito de arrependimento em até sete dias nas compras fora do estabelecimento físico.
Art. 67 – previsão penal para quem faz ou promove publicidade enganosa ou abusiva.
Esses dispositivos mantêm plena eficácia mesmo em contextos promocionais, garantindo que o entusiasmo do consumo não se sobreponha à proteção jurídica do comprador.
O comércio eletrônico e o Decreto nº 7.962/2013
Com o crescimento das compras virtuais, o Decreto nº 7.962/2013, conhecido como Lei do Comércio Eletrônico, tornou-se fundamental. Ele obriga o fornecedor a identificar-se claramente (com razão social, CNPJ e endereço físico), a informar o preço total, eventuais despesas adicionais, prazos de entrega e condições de devolução.
O descumprimento dessas exigências caracteriza prática abusiva nos termos do artigo 39 do CDC. Além disso, o artigo 49 garante ao consumidor o direito de arrependimento nas compras realizadas à distância, mesmo durante campanhas promocionais.
Fiscalização e sanções administrativas
Durante o período da Black Friday, órgãos como o Procon, o Ministério Público e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) intensificam a fiscalização com base no Decreto nº 2.181/1997, que regulamenta as sanções administrativas previstas no artigo 56 do CDC. As penalidades vão desde advertência e multa até a suspensão temporária da atividade e a cassação de licença de funcionamento.
Segundo dados do Procon-SP, as principais reclamações envolvem maquiagem de preços, descumprimento de oferta, atraso na entrega, ausência de informações claras e falhas no atendimento pós-venda. Essas práticas afrontam diretamente os artigos 6º, 31 e 37 do CDC.
Publicidade enganosa e responsabilidade civil e penal
A publicidade enganosa é a infração mais recorrente durante a Black Friday. O artigo 37 do CDC proíbe qualquer anúncio que contenha informação falsa, omita dados essenciais ou induza o consumidor em erro. A jurisprudência tem reiterado que a simples omissão de elementos relevantes configura ilicitude, mesmo sem a intenção deliberada de enganar.
Sob o ponto de vista civil, aplica-se a responsabilidade objetiva prevista no artigo 14 do CDC e no artigo 927 do Código Civil. Penalmente, o artigo 67 do CDC prevê detenção de três meses a um ano e multa ao responsável pela veiculação de publicidade enganosa ou abusiva. Diversas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmam a legitimidade das multas impostas pelo Procon a grandes redes que simularam descontos inexistentes durante a Black Friday.
O direito de arrependimento e a tutela do consumidor
O direito de arrependimento, assegurado pelo artigo 49 do CDC, permite que o consumidor desista da compra em até sete dias, contados a partir do recebimento do produto ou assinatura do contrato, quando a aquisição ocorrer fora do estabelecimento físico. Esse direito se aplica integralmente à Black Friday, não podendo ser limitado pelo fornecedor.
O reembolso deve ser integral, incluindo o valor do frete, e não pode ser condicionado à justificativa ou à cobrança de taxas. O Decreto nº 7.962/2013 reforça a obrigação de os fornecedores disponibilizarem meios eficazes de comunicação para a devolução dos valores.
Boas práticas para fornecedores e consumidores
Para os fornecedores, recomenda-se:
1. Manter registro documental dos preços anteriores, comprovando a veracidade dos descontos.
2. Indicar claramente o preço original, o percentual de redução e o prazo da oferta.
3. Cumprir rigorosamente prazos de entrega e condições prometidas.
4. Evitar publicidade ambígua ou manipulação de informações.
5. Garantir suporte pós-venda e canais de atendimento acessíveis.
Para os consumidores, é essencial:
1. Pesquisar o histórico de preços antes da compra.
2. Guardar anúncios, comprovantes e conversas como prova da oferta.
3. Verificar o CNPJ e a reputação do site.
4. Exigir cumprimento da oferta, ou, se for o caso, solicitar reembolso com base no artigo 35 do CDC.
5. Registrar reclamações no Procon ou na plataforma consumidor.gov.br.
Essas práticas fortalecem a proteção jurídica e reduzem o risco de fraudes ou prejuízos em compras online.
Considerações finais
A Black Friday se consolidou como um fenômeno econômico e cultural no Brasil, mas também como um campo fértil para violações do direito do consumidor. A legislação brasileira é clara ao estabelecer que a oferta obriga o fornecedor e que a boa-fé deve reger todas as relações comerciais, inclusive em períodos promocionais.
Cabe aos operadores do Direito, advogados, magistrados e membros dos órgãos de defesa, orientar e fiscalizar para que o marketing agressivo não se sobreponha à legalidade. A data, originalmente concebida como um momento de oportunidade e consumo consciente, só mantém sua legitimidade quando o respeito às normas consumeristas é efetivo.
Uma Black Friday ética e transparente é aquela em que o desconto é verdadeiro, o contrato é cumprido e o consumidor é tratado com respeito.
Por Adriana Moura Advogada
Referências bibliográficas
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 12 set. 1990.
BRASIL. Decreto nº 7.962, de 15 de março de 2013. Regulamenta a contratação no comércio eletrônico. Diário Oficial da União, Brasília, 18 mar. 2013.
BRASIL. Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997. Dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Diário Oficial da União, Brasília, 21 mar. 1997.
INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (IDEC). Guia de Direitos na Black Friday. São Paulo, 2024.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Cartilha Senacon Black Friday. Brasília, 2023.
PROCON-SP. Relatório de Fiscalização da Black Friday. São Paulo, 2024.
Black Friday e Direito do Consumidor: entre a euforia das promoções e os limites da legalidade
