A violência doméstica não é um fenômeno isolado. Ela se inscreve no cotidiano de milhares de brasileiras e se revela, muitas vezes, sob um manto de silêncio, vergonha e medo. Não se trata apenas de um problema privado, mas de uma violação de direitos humanos que exige enfrentamento jurídico, social e cultural.
Além da agressão física: a complexidade da violência doméstica
Ao se falar em violência doméstica, o imaginário coletivo ainda tende a restringi-la à agressão física. No entanto, a realidade é bem mais ampla e cruel. A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi um marco ao reconhecer que a violência pode se manifestar de forma:
– Psicológica, por meio de ameaças, chantagens, isolamento e humilhações;
– Sexual, quando há imposição de relações sem consentimento, inclusive no casamento;
– Patrimonial, com destruição de objetos, retenção de documentos ou controle financeiro;
– Moral, por ofensas que ferem a honra da mulher;
– Física, que pode culminar no feminicídio — a forma mais extrema de violência de gênero;
– Vicária, quando o agressor atinge a mulher indiretamente, causando danos a filhos, dependentes ou pessoas próximas para feri-la emocionalmente. É uma forma cruel de controle e punição.
O ciclo da violência: por que é tão difícil romper?
A violência doméstica opera em um ciclo perverso: tensão, explosão e reconciliação. A cada repetição, a vítima se vê mais vulnerável, presa em vínculos afetivos, dependência econômica e julgamentos sociais. Romper esse ciclo exige mais do que coragem individual: requer uma rede de apoio estruturada, eficiente e empática.
A resposta do Estado: legislação e lacunas
O Brasil avançou significativamente no enfrentamento da violência doméstica. A criação da Lei Maria da Penha foi um divisor de águas, seguida por marcos importantes como a Lei nº 14.994/2024, que tipificou o feminicídio como crime autônomo, inserido no art. 121-A do Código Penal.
Agora, o feminicídio é descrito como o homicídio praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, com pena de 20 a 40 anos de reclusão. A nova legislação também prevê causas de aumento de pena quando o crime for cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou na presença de descendente ou ascendente da vítima.
Outro avanço importante foi a criminalização da violência psicológica (art. 147-B do Código Penal), que fortalece a proteção da mulher contra agressões que, embora invisíveis, são devastadoras.
Apesar desses avanços, a efetividade da lei ainda enfrenta desafios: morosidade na concessão de medidas protetivas, ausência de estrutura das Delegacias Especializadas, revitimização da mulher durante o processo e a naturalização da violência por parte de agentes públicos.
A importância da escuta qualificada e da responsabilização:
Toda mulher que denuncia precisa ser ouvida com respeito, sem julgamento. O papel do Judiciário, da advocacia e dos órgãos de proteção é não apenas julgar, mas acolher. Responsabilizar o agressor é afirmar que o corpo, a mente e a vida da mulher não são territórios de controle alheio.
Educar é prevenir:
A transformação começa pela base. Discutir relações saudáveis nas escolas, promover campanhas educativas, capacitar profissionais da rede de proteção e envolver os homens no combate à cultura do machismo são estratégias fundamentais. Não basta punir: é preciso educar. E educar para o respeito é educar para a liberdade.
Conclusão
Enquanto uma mulher viver sob o medo dentro da própria casa, o Estado e a sociedade estarão falhando. A violência doméstica não é problema do outro — é responsabilidade de todos. Como advogada, como mulher e como cidadã, reafirmo: romper o ciclo da violência é um compromisso coletivo com a vida.
Referências
1. Lei nº 11.340/2006 ( Lei Maria da Penha)— Disponível em: https://www.planalto.gov.br
2. Lei nº 14.994/2024 — Tipifica o feminicídio como crime autônomo no art. 121-A. Disponível em: https://www.planalto.gov.br
3. Código Penal Brasileiro — Art. 121-A (Feminicídio) e art. 147-B (Violência Psicológica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br
4. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) — Anuário 2024. Disponível em: https://www.forumseguranca.org.br
5. OMS – Organização Mundial da Saúde — Violência contra a mulher. Disponível em: https://www.who.int
6. CNJ – Conselho Nacional de Justiça — Cartilha sobre violência doméstica. Disponível em: https://www.cnj.jus.br
Instagram: @driipmoura
Site: www.adrianaadvogada.com.br
Publicação do Artigo – Jus Brasil